quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Apoio a cientistas pode frear ilegalidades

Por Paulo Fortuna
Especial Valor Econômico
Biodiversidade

O Brasil ainda está longe de dispor de armas eficientes para combater a ação da biopirataria, que é a prática ilegal de exploração, manipulação, exportação e comercialização de recursos biológicos de um país a outro. Governo e pesquisadores concordam que é preciso aumentar cada vez mais a ação fiscalizadora contra os biopiratas, mas, ainda assim, isso atacaria apenas parte do problema. A solução apontada como a mais eficiente seria o País tomar a dianteira das pesquisas de sua biodiversidade, se antecipando aos estrangeiros. Mas neste campo também há enormes desafios, inclusive por conta das dificuldades impostas pelo atual marco legal do setor.

Há diversos casos de empresas internacionais que patentearam substâncias que são encontradas originalmente na Amazônia Legal brasileira e nos países vizinhos
Há patentes internacionais de componentes derivados da secreção da
phyllomedusa bicolorm, um tipo de rã, apelidada de “sapo Kambô”, encontrada na Amazônia. Na medicina tradicional dos indígenas do Brasil e do Peru, a secreção é usada para fazer a “vacina do sapo”, para afastar a má sorte com as mulheres e a caça. Pesquisas no exterior apontaram a presença da dermofina, um analgésico, e deltorfina, que pode ser aplicada no tratamento da isquemia.

No Canadá foi patenteado o rupununine, uma substância extraída das sementes do bibiri planta da Amazônia. A tribo Wapixana, de Roraima, utiliza esta substância como um anticoncepcional. As pesquisas canadenses indicaram que o produto pode ser usado para tratamento de tumores e Aids. Composições à base de óleo de copaíba foram patenteadas por companhias da França e nos EUA. O uso mais comum é o medicinal, sendo empregado como anti-inflamatório e anticancerígeno.

O nome açaí, fruta típica da Amazônia, estava registrado desde 2003 no Japão como marca de propriedade da empresa K.K. Eyela Corporation. Em 2007, o registro da marca foi cancelado por ordem do Japan Patent Office, após protestos do governo brasileiro. O mesmo aconteceu com outra fruta típica da região, o cupuaçu. A japonesa Asahi Foods tentou patentear o cupuaçu e ainda registrou em 2000 a marca “cupulate”, que é o chocolate feito com a amêndoa da fruta. Mas quatro anos depois o registro acabou negado pelas autoridades japonesas.

A organização não governamental Amazonlink, com sede em Rio Branco, no Acre, faz o acompanhamento das patentes internacionais de produtos derivados de substâncias originárias da Amazônia, mas admite que, em muitos casos,
não há como apontar até que grau a biopirataria se aplica aos detentores de patentes e marcas.

O presidente da Amazonlink, o aústriaco Michel Schmidlehner, entretanto, considera questionável o patenteamento por companhias internacionais de substâncias que são usadas tradicionalmente por comunidades amazônicas. Na sua visão, essas comunidades deveriam ser consultadas sobre o uso destes produtos.

“Os povos indígenas têm que opinar se querem ou não que essas substâncias sejam utilizadas pela indústria e, caso aceitem, de que forma poderiam se beneficiar da repartição dos seus recursos” afirma ele.

Não há números precisos sobre quanto o Brasil deixa de ganhar por não explorar de forma eficiente a sua biodiversidade e abrir caminho para que outros o façam, mas um relatório realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em 2006, apontou que o valor poderia chegar à época a US$ 2,4 bilhões por ano. O cálculo do TCU levou em conta fatores como o faturamento total da indústria farmacêutica (US$ 300 bilhões), a parcela relativa à biodiversidade brasileira neste setor (já que o Brasil detém 20% das espécies reconhecidas) e considerando ainda os distintos percentuais de benefícios que poderiam ter sido negociados.

O estudo do TCU, que foi centrado na Amazônia, aponta deficiências na fiscalização tanto da Polícia Federal quanto do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama). “A inexistência de expectativa de controle, tanto na saída de espécies para exportação, como no fluxo de pessoas e bagagens, favorece a saída ilegal de espécies e matéria genética, assim como a entrada de pragas”, aponta o relatório, que recomendou ao Ibama, por exemplo, que oferecesse treinamento aos funcionários para que pudessem aprimorar a identificação das
espécies, além de destacar mais gente para os aeroportos.

O TCU aponta, no documento, que o aprimoramento da fiscalização, ainda que necessário, não é capaz de coibir a biopirataria. Um dos pontos destacados no documento é mau aproveitamento de uma instituição criada justamente com o objetivo de desenvolvimento de bioprodutos, a Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA). Mas, sem personalidade jurídica própria, seu funcionamento era precário. O TCU recomendou que em 180 dias fosse definido um plano de gestão e um plano estratégico para o Centro.

O CBA tem um histórico de impasses, que começou com repercussão negativa do "acordo de bioprospecção", firmado em 2000, entre a empresa suíça Novartis e a Bioamazônia, organização social criada para colaborar com a implantação do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (Probem/Amazônia) e do Centro. O acordo acabou suspenso por razões legais em meio a críticas, principalmente de pesquisadores brasileiros.

Desde 2002 o CBA passou a ser administrado pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), mas até hoje sua personalidade jurídica não foi definida. Em abril deste ano, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e Comércio Exterior (MDCI), ao qual a Suframa é subordinada, encaminhou um documento à Casa Civil recomendando a transformação do centro em uma empresa pública. A proposta ainda está em análise na Casa Civil e, caso seja aceita, o governo devera enviar um projeto de lei ao Congresso para que seja autorizada a criação desta empresa.

Pesquisadores brasileiros reclamam das limitações impostas pela Medida Provisória 2.186/01, editada há nove anos, que estabelece condições para a coleta, acesso, transporte e remessa, repartição de benefícios, transferência de tecnologia, conservação e utilização do patrimônio genético nacional. De acordo com os pesquisadores, diversos aspectos da MP têm burocratizado e, em muitos casos, prejudicado o desenvolvimento biotecnológico brasileiro. Um dos principais motivos das reclamações é que qualquer coleta de planta ou inseto, por exemplo, tem que ser informada ao governo.

O professor titular e coordenador do programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, Thomas Michael Lewinsohn, acha compreensível os cuidados tomados no País para tentar conter a biopirataria, mas ressalta que os cientistas brasileiros não estão reivindicando carta branca para realizarem suas pesquisas, mas sim condições de trabalho que possibilitem que o País avance no conhecimento de sua biodiversidade. “Os cientistas brasileiros não podem ser tratados como se fossem suspeitos de praticarem a biopirataria. A princípio, todos devem ser considerado inocentes e, se forem constatados atos ilegais, aí sim eles devem ser punidos”, afirma ele.
Lewinsohn ressalta que as restrições da MP dificultam o relacionamento dos pesquisadores do País com instituições estrangeiros, que seriam importantes para o avanço das pesquisas no Brasil. “É fundamental que o Brasil faça intercâmbio científico nesta área, mesmo porque não há conhecimento suficiente no País para dar conta do volume gerado pela nossa biodiversidade. Já ocorreram casos em que o Brasil ficou de fora de redes mundiais de pesquisa por conta destas dificuldades”, afirma ele.
O diretor do Departamento de Conservação da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, Braulio Dias, garante que o governo melhorou os mecanismos de fiscalização da biopirataria , inclusive com a aprimoramento técnico dos fiscais do Ibama. Mas ele ressalta que o combate tem que ser travado em diversas frentes e não somente com repressão. “É impossível botar um fiscal atrás de cada árvore”, diz ele. Para o diretor, o País tem que investir no aproveitamento da sua biodiversidade e na criação de incentivos econômicos para que a população das regiões onde ficam os recursos, principalmente na Amazônia, sejam beneficiadas.

Dias admite que o marco legal existente hoje no setor, com a MP 2.186/01, não favorece os trabalho dos pesquisadores brasileiros e diz que o governo vai enviar ainda este ano ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que deve reduzir a burocracia para o setor. De acordo com ele, o projeto – que está em fase final de análise na Casa Civil - deve estabelecer de forma mais clara, no que se refere à biodiversidade, o que é pesquisa básica e o que é aplicada e estabelecer mecanismos que facilitem a repartição dos recursos oriundos da exploração dos recursos.

Segundo ele, uma outra forma de combater a biopirataria é o estabelecimento de um marco global para a proteção da biodiversidade. “Não adianta o Brasil realizar ações para combater a biopirataria se em outros países não há regulação sobre a exploração destes recursos”, afirma, Dias afirma que o Brasil levará a proposta de uma regulação internacional à 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-10) das Organizações das Nações Unidas, em Nagoya, no Japão.

O diretor geral do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa), Adalberto Luis Val, também acha que a ampliação da fiscalização, embora seja importante, não vai conter a ação dos biopiratas. “Sou contra botar uma cerca na Amazônia. O que nós temos que fazer é sair na frente dos estrangeiros na exploração da nossa biodiverisade”, afirma ele

O pesquisador lista uma série de dificuldades para combater o uso de recursos do Brasil por estrangeiros na região amazônica, até mesmo de ordem geográfica, como uma área pertencente a um país europeu, a Guiana Francesa. A Amazônia Legal brasileira inclui Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Rondônia e Tocantins e parte do estado do Maranhão. A região amazônica ainda se estende pela Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Suriname, Guiana e Guiana Francesa.

“Não temos como fiscalizar o que acontece em todo este imenso território espalhado por vários países. Além disso, como impedir que alguém capture um peixe da Amazônia que acaba indo para o mar ou uma ave que migre do Canadá para o Brasil e depois retorne para a América do Norte?”, questiona ele.

Ele ressalta que as pesquisas na região, que concentra a maior parte da biodiversidade brasileira, ainda estão muito aquém do que seria o mínimo necessário para estudar a biodiversidade local. Ele cita, por exemplo, que há apenas 10 especialistas em taxonomia vegetal (ramo da botânica que se ocupa da classificação das plantas) em toda a Amazônia legal brasileira. “É o tipo de especialista que é vital para a pesquisa da nossa diversidade. Tem que haver investimento não apenas na formação, mas também na fixação de pesquisadores na Amazônia”, acrescenta Val.

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