quarta-feira, 28 de julho de 2010

A reforma (quase) impossível

Paulo Fortuna
Revista Conselhos
Publicação da Fecomércio-SP

A proximidade das eleições presidenciais coloca novamente no centro dos debates a necessidade de uma reforma fiscal que tenha como meta tornar o estado mais eficiente, aliviar o peso dos impostos para o setor produtivo e dar mais equilíbrio a divisão dos tributos entre todas as esferas governamentais. A urgência da reforma é admitida pelos três candidatos presidenciais à frente das pesquisas de intenção de voto - José Serra (PSDB), Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV) - mas especialistas de diversos setores ouvidos pela revista Conselhos apontam sérios obstáculos para levar adiante uma mudança profunda, principalmente porque a concentração de recursos nas mãos da União colocou o governo federal como principal gestor de investimentos públicos em todo o País, o que resultou em enormes dividendos políticos.

O constitucionalista Ives Gandra Martins defende a idéia de que uma reforma fiscal abrangente no País só sairá do papel caso algum dia o governo federal tiver, de fato, interesse em aprová-la no Congresso. Para o constitucionalista, foi exatamente a falta de vontade política dos últimos governos que fez com que as propostas de mudanças mais profundas não fossem para frente. “O governo domina as votações do Congresso. Se houvesse disposição da União, a reforma já teria sido levada adiante”, diz Ives Gandra, presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio

Ives Gandra avalia que a atual estrutura tributária do País, em que a União concentra 70% da arrecadação dos impostos e estados e municípios dividem o resto, é um fator chave para explicar o desinteresse do governo em levar, a sério, uma proposta de reforma do sistema. “A União só promoverá uma reforma fiscal se tiver a garantia de que não vai perder o que já tem”, ressalta.

Na visão do constitucionalista, a União só aceitaria dividir uma parcela maior da arrecadação com os estados e municípios se tivesse como compensação um aumento da carga tributária total. Outra alternativa seria readequar o orçamento e reduzir as despesas de custeio, sobretudo com o funcionalismo. “A carga tributária só cairá com a redução da burocracia do governo, que só tem crescido, mas sem oferecer serviços públicos correspondentes”, destaca.

Se mexer na arrecadação dos tributos da União é complicado, Ives Gandra ressalta que também não é fácil promover mudanças na estrutura de arrecadação do principal imposto arrecadado pelos estados, o ICMS. Para ele, a proposta mais discutida para acabar com a “guerra fiscal” promovida pelos estados, com a
a unificação do ICMS e a adoção de um imposto único cobrado no destino da mercadoria - o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) - dificilmente encontrará consenso no Congresso Nacional.

Ives Gandra ressalta que a adoção do regime de destino implicará perdas para os estados exportadores líquidos, que vendem mais do que compram de outros estados, e ganho para os estados importadores líquidos, que compram mais do que vendem. “Os representantes dos estados exportadores líquidos, como São Paulo, não aprovarão uma reforma que implique em queda de receita”, diz.

O economista e consultor Amir Khair também enxerga complicações políticas em levar adiante uma reforma fiscal que dependa de um consenso no Congresso. Khair observa que, certamente, os secretários estaduais da Fazenda serão consultados sobre o impacto da mudança do ICMS na receita dos seus estados, o que pode complicar ainda mais as discussões. “Os secretários dos estados que tiverem menos arrecadação vão exagerar nas perdas. E aqueles que arrecadarem mais vão afirmar que ganham muito menos”, projeta Khair, ex-secretário de Finanças da cidade de São Paulo e mestre em Finanças Públicas pela FGV-SP.

Khair alerta que, neste cenário, a reforma pode ficar muito mais complexa, com a apresentação de emendas e substitutivos no Congresso para “compensar” as perdas de arrecadação. “O resultado pode ser um aumento na carga tributária”, diz .

O economista acredita que o Estado teria condições de reduzir a carga fiscal e manter simultaneamente o equilíbrio orçamentário, desde que sejam tomadas medidas que mudem a estrutura tributária do País. Ele propõe um modelo em que a redução geral dos impostos seja acompanhada por uma redistribuição da carga de impostos entre as faixas de renda. “O peso da carga tributária na renda para quem ganha até dois salários mínimos no Brasil é de 49%, enquanto na faixa acima de 30 salários mínimos é de 26%”, pondera.

A redistribuição proposta por Khair inclui o aumento de alíquotas de Imposto de Renda (IR) para faixas de rendas mais elevadas e a implantação do imposto sobre grande fortunas, ao mesmo tempo que haja uma desoneração nos produtos de consumo populares, cujos preços tenderiam a cair. “O potencial dessas medidas supera a de um imposto como a CPMF”, compara.

Ele avalia que essa combinação de medidas permitiria ampliar e incorporar um maior contingente de consumidores, gerando maior consumo, produção e desenvolvimento econômico e social, mas sem comprometer necessariamente as finanças públicas. “O desenvolvimento econômico ampliaria a arrecadação, proporcionando maiores recursos para o atendimento das necessidades da população e da infra-estrutura“, argumenta.

Khair acrescenta que, num ambiente de crescimento econômico e aumento do poder aquisitivo, a demanda por serviços públicos tende a ser menor, que seria outro ponto de alívio para as contas do governo. Uma situação contrária ao de um ambiente de baixo crescimento econômico, onde o poder público seria mais pressionado por reivindicações, mas contaria com recursos mais escassos, ressalta Khair.

A pesquisadora Soraia Cardozo, docente do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFB) e doutora pela Unicamp, destaca que o sistema tributário brasileiro, em especial o ICMS, possui características que estimulam a guerra fiscal entre os estados. “Além de ser cobrado na origem, esse imposto pertence aos governos estaduais, ao contrário da tendência mundial em que, em sistemas federativos, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é de competência é de competência da União ou está inserido em um sistema em que tanto o governo federal quanto o estuadual possuem competência sobre o imposto, simultaneamente. Essa característica favorece a guerra fiscal”, afirma.

A pesquisadora acredita que uma mudança no mudança no sistema fiscal do País tem que ser acompanhada de políticas nacionais para o desenvolvimento regional. A economista ressalta que muitos estados não possuem outras ferramentas, além dos incentivos fiscais, para atrair investimentos. “Apenas a reforma tributária não adiantaria nesse caso. Se não for adotada uma política de desenvolvimento regional, os estados e municípios acabarão encontrando outras maneiras de praticar a guerra fiscal”, diz Soraia Cardozo, cuja tese de doutorado da Unicamp trata da guerra fiscal entre os estados brasileiros.

Protagonismo

O cientista político Ricardo Ismael, coordenador da graduação do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, ressalta que uma reforma fiscal ampla exigirá que a governo federal reduza o seu papel de protagonista dos investimentos públicos no País, inflado nos últimos anos por conta da concentração do bolo tributário da União. “Por conta da centralização da arrecadação, hoje todo o protagonismo dos investimentos é do governo federal, inclusive nos programas sociais, como o bolsa-família. Em qualquer lugar do País podermos ver obras com placas da Unuião Se quisermos que estados e municípios assumam o seu papel como investidores, será necessária uma descentralização dos recursos”, diz .

O cientista político lembra que os estados e municípios tiveram perdas nos repasses dos fundos de participações quando o governo, em meio à crise, reduziu as alíquotas de IPI de produtos como automóveis e linha branca e colheu sozinho os dividendos políticos da medida. “O governo fez caridade com o chapéu alheio. A renúncia fiscal fez com que estados e município perdessem recursos e capacidade de investimento”, afirma.

Como a estrutura de arrecadação favorece hoje a União, ele avalia que a pressão por mudanças deve partir dos estados e municípios, além do Congresso Nacional que, destaca Ismael, vem mostrando subordinação ao governo nesta questão. “Esperamos que a próxima legislatura leve esta agenda adiante. É o Congresso que deve puxar essas discussões, pois o governo teme que uma reforma fiscal resulte em perda de arrecadação”, lembra o coordenador da PUC-RJ.

Ismael acrescenta que outros setores da sociedade poderiam pressionar por uma

reforma mais ampla, que incluísse pontos como a desoneração das exportações. “Os setores exportadores poderiam reivindicar do governo uma reforma que desse mais competitividade às empresas para disputarem o mercado internacional. O problema é que no caso de redução de ICMS o governo federal teria que adotar um mecanismo de compensação para o Estados”, ressalta.

O coordenador também acha que pode haver pressão para reduzir os impostos que incidem sobre a cesta básica, outra mudança que obrigaria medidas compensatórias por parte da União. “Não adianta aumentar o salário mínimo e dar bolsa-família enquanto os preços da cesta básica continuam altos”, afirma.

Descentralização

O filósofo Roberto Romano, professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, prega uma reforma mais profunda da estrutura federativa brasileira que proporcione mais autonomia e consequentemente mais poder de decisão e responsabilidade para estados e municípios. O filósofo considera que, sem isso, os eventuais efeitos positivos de uma reforma fiscal estariam comprometidos. “Não adianta reforma fiscal. É como tentar operar uma máquina torta. Você pode tentar corrigir, mas ela vai funcionar mal”, afirma.

Romano ressalta que não há tradição no País de uma força política que se oponha ao poder central, diferentemente de outros países, como os Estados Unidos, onde há de fato um estado federativo. “A presidência da República no Brasil é imperial. O governo federal é como um exército que invade as cidades para arrancar os impostos como se fossem um butim”, compara o filósofo. “O resultado é que praticamente todos as políticas públicas são comandadas hoje pelo poder central, o que é uma distorção”, completa.

Na sua avaliação, a excessiva centralização do poder, inclusive na cobrança de impostos, é um dos principais causadores da política de troca favores que acaba permeando a relação entre o poder executivo e Congresso. “Essa relação de servidão faz com que grande parte do poder legislativo só trabalhe para arrancar verbas ou chantagear o governo em busca de mais recursos. O quadro só favorece os oligarcas regionais”, afirma. “Se de fato houvesse mais autonomia, ficaria mais difícil a existência desses operadores políticos”, acredita.

Embora admita a dificuldade de reverter essa tradição, Romano acredita que algumas condições estão dadas para que a sociedade desperte para a necessidade de mais autonomia em relação ao poder central. Para o professor, catástrofes como as recentes enchentes em Alagoas e Pernambuco mostram que seria muito mais eficiente se os municípios desses estados tivessem recursos para evitar as tragédias, do que esperar depois pelas verbas da União.

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